O conto de Cezimba Jaques e as ilustrações de Eduardo Trevisan, que
estão reunidas em um painel na reitoria da UFSM ganham as páginas da
revista MIX deste fim de semana. Em 2012, a lenda da filha da água, a
Imembuí, completa 100 anos de sua publicação em livro. Em comemoração
aos 154 anos da emancipação política de Santa Maria, contamos a polêmica
que existe no meio literário local sobre este conto/lenda que aborda o
romance entre a índia e o branco Morotin. No MIX, você também confere um
artigo sobre o relacionamento entre os animais, tidos como os melhores
amigos do homem, e seus donos.
É com esses versos que o professor do Departamento de Ciências Sociais
da Universidade Federal de Santa Maria, escritor e jornalista Humberto
Gabbi Zanatta apresenta às crianças a Lenda de Imembuí, no livro Imembuy
em Versos (2009), inspirado no conto do escritor santa-mariense
Cezimbra Jacques. Em forma de poesia, ele começa a explicar algo que,
muitas vezes, é difícil de fazer até os adultos entenderem: a origem
lendária de Santa Maria não passa de um conto, ou seja, nunca foi
verdadeiramente uma lenda – narrativa baseada na tradição popular e com
elementos fantásticos em sua estrutura, como é o caso do Negrinho do
Pastoreio. A cidade completou seus 154 anos de emancipação na última
quinta-feira. Já a narrativa criada por Jacques, contando sobre a bela
índia Imembuí que viveu uma história amor com o homem branco Rodrigues,
mais tarde batizado pelos minuanos de Morotin, só foi publicada pela
primeira vez em um jornal em 1910 e em um livro em 1912. A data do livro
é tida oficialmente como a de aniversário
da lenda. Assim, neste ano, o conto completa seu centenário. Um marco
para Santa Maria onde, a partir da ficção, surgiram nomes de
empreendimentos locais como uma televisão, a TV Imembuí (hoje RBS TV),
uma rádio (Imembuí), hotéis (Morotin e Itaimbé), o principal parque da
cidade (Itaimbé), entre outros.
Enquanto os documentos históricos
dão conta que Santa Maria surgiu a partir de um acampamento militar, a
lenda é bem mais romântica. Ela fala da linda índia Imembuy (cujo nome
significa “filha da água”), que era filha do cacique de uma tribo
minuano que vivia nas margens do arroio Taimbé (hoje Itaimbé). Certo
dia, em um confronto entre índios e bandeirantes, o branco Rodrigues foi
capturado e feito prisioneiro na aldeia. Imembuy e Rodrigues se
apaixonaram. O homem branco, então, passou a fazer parte da tribo e foi
batizado de Morotin. Com a permissão do cacique, Imembuy e Morotin se
casaram. O primeiro filho do casal, José, teria sido o primeiro
santa-mariense.
– O conto foi publicado no livro Assuntos do Rio
Grande do Sul em 1912. Ele só foi tratado como lenda por João Belém, em
1933, na obra História do Município de Santa Maria. É a única ficção
escrita pelo Cezimbra Jacques. Os outros escritos dele são estudos
antropológicos e sociais. Acredito que ele não quis forjar uma lenda
sobre a cidade e, sim, criar uma história ficcional sobre a sua origem.
Porém, João Belém pegou esse texto, deu qualidade literária, transformou
em lenda e apagou o seu criador, sem citá-lo em sua obra – afirma o
escritor, pró-reitor de Graduação da UFSM e cronista do Diário, Orlando
Fonseca, que foi um pioneiro no estudo acadêmico da Lenda de Imembuí.
Lenda serviu de inspiração
Apesar
de a lenda ter servido de inspiração a artistas como o santa-mariense
Eduardo Trevisan (1920-1983), que na década de 50 desenhou as obras que
ilustram a revista MIX deste fim de semana e que, em 1976, pintou o
mural que decora o Salão Imembuí, na reitoria da UFSM, demorou para que
ela fosse alvo de estudos mais aprofundados.
Fonseca, o
cartunista Jorge Ubiratã da Silva Lopes, o Byrata, e o jornalista Chico
Sosa estão entre as pessoas que foram revirar arquivos à procura da
origem da narrativa literária.
– Em 1942, Getulio Schilling
escreveu a biografia de Cezimbra Jacques e apontou, pela primeira vez,
essa possibilidade de que a lenda era puramente literária. Como eu tinha
oportunidade de montar um projeto por meio da universidade, nós fizemos
uma revisão de toda a bibliografia relacionada à tradição oral e ao
folclore do Estado. Não há registro algum do drama, muito menos do nome
Imembuí – afirma Orlando.
No livro Cezimbra Jacques – O Precursor
(1986), Schilling diz que a história que João Belém apresenta nas cinco
páginas de seu livro nada mais era do que uma síntese da que Jacques
escreveu em 29 páginas, décadas antes. O pesquisador acredita que foi
por conta da transformação da história em lenda que o parque que existia
no antigo Prado foi transferido para onde hoje está o Parque Itaimbé,
onde ficava o arroio que foi o principal cenário da trama de Jacques.
Fonseca coordenou uma pesquisa sobre a lenda junto ao Mestrado em Letras da UFSM, entre 1999 e 2001.
–
Buscávamos uma referência anterior ao livro Assuntos do Rio Grande do
Sul, para estabelecer a origem popular e oral da “lenda”. Nada foi
encontrado, nem em documentos de Santa Maria, nem em antologias sobre
narrativas populares do nosso Estado. Cezimbra Jacques era assíduo
articulista do jornal A Federação, de concepção positivista, e foi neste
periódico que ele publicou pela primeira vez o seu conto indígena, em
13 de julho de 1910. Então, na realidade, essa história tem 102 anos –
explica o professor, que lamenta Cezimbra Jacques ter sido esquecido
como autor do conto.
Jacques morreu em 1922, em completo
esquecimento. Apesar disso, ele foi o primeiro escritor de Santa Maria –
publicou a obra Ensaio sobre os costumes do Rio Grande em 1883 –, além
de ser um dos fundadores da Academia Rio-Grandense de Letras e precursor
do cultivo aos costumes gauchescos, sendo atualmente o patrono do
Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG).
Para Zanatta, que tem
Cezimbra Jacques como patrono da cadeira que ocupa na Academia
Santa-Mariense de Letras, escrever o livro infantil buscando
conscientizar desde as novas gerações sobre a origem do conto é uma
forma de fazer justiça ao autor da história da índia Imembuí.
–
Independentemente da origem da história, ela traz um simbolismo muito
forte ligado à cidade. É importante que as crianças possam conhecer a
Lenda de Imembuí e saber quem a escreveu – diz Zanatta.
Em 2000,
quando o livro de João Belém foi reeditado pela Editora da UFSM, ele
teve o acréscimo de uma apresentação, feita pela professora Ieda
Gutfreind. Ela fala sobre o modelo de apresentação das histórias
municipais, que geralmente segue uma ordem: “da lenda passa-se à
descrição geográfica com ênfase aos tratados de limites, sempre com
provas documentais, dentre estas, trechos de diários de demarcadores e
mapas. Do meio físico volta-se para o estudo do homem, as certidões de
batismo e os registros de casamento, que balizam a verdade histórica da
sociedade”.
Para o professor do departamento de História da UFSM,
Vitor Biasoli, Belém pode ter transformado o conto em lenda para seguir
essa narrativa:
– Para isso, precisava de uma lenda sobre a
origem de Santa Maria e viu essa oportunidade no texto de Cezimbra
Jacques. Mas o que existem são suposições. No fim das contas, o motivo
pelo qual ele fez isso é um mistério – diz Biasoli.
Obras contém semelhançasJoão
Belém apresenta o capítulo com a narrativa sobre Imembuí com o título
Santa Maria Lendária, enquanto Jacques apresentava a história como
Imembuy – Conto Indígena. As duas versões apresentam diversas
semelhanças. Entre elas, Belém comete uma impropriedade histórica que
também havia aparecido no original de Jacques. Ambos falam de
bandeirantes que regressavam da Colônia de Sacramento, no Rio da Prata.
Porém, o último embate entre indígenas e bandeirantes no Estado teria
acontecido em 1640. Já a Colônia de Sacramento foi fundada em 1680, o
que distancia os dois momentos históricos em cerca de quatro décadas.
Desde
a década de 80, Chico Sosa pesquisa sobre a Lenda de Imembuí para a
confecção de um álbum em quadrinhos com o cartunista Byrata. Na época,
os dois editavam a revista Nativismo – a primeira a circular em todo o
Estado só com matérias de cultura gaúcha – e conheciam a importância do
estudo de Jacques.
– Muita gente não dava importância a ele porque era um autodidata. Não era ligado à academia – afirma Sosa.
Quando
recebeu a proposta de fazer os textos para a revista em quadrinhos –
que ainda não foi lançada –, Sosa começou a estudar a história dos
índios do Rio Grande do Sul, para saber mais sobre os tapes e minuanos.
–
Fui descobrindo que a lenda não tinha aspecto de lenda. Ela tinha
estilo de conto, pois não tinha elemento sobrenatural ou de fábula.
Quando li o livro do Schilling, as coisas começaram a fazer mais sentido
– conta Sosa.
Devido à importância do trabalho de Cezimbra
Jacques, Sosa chegou a protocolar um pedido na Câmara de Vereadores para
que a Avenida Liberdade mudasse seu nome para o do escritor
santa-mariense. A ideia foi aceita em parte. A avenida manteve o mesmo
nome, mas foi criado o Largo Cezimbra Jacques, em frente ao Regimento
Mallet.
Produções têm recontado a históriaAo
longo de suas pesquisas, o jornalista Chico Sosa e o professor Orlando
Fonseca acabaram trocando muitas informações. Em 2008, essa parceria
ganhou vida em uma montagem com ares de superprodução. Escrito por
Orlando Fonseca em 1994 e musicado por Otávio Segala, o Musical Imembuy
foi apresentado no Theatro Treze de Maio, durante a programação dos 150
anos da cidade e com financiamento de R$ 100 mil pela Lei Rouanet. A
direção geral do espetáculo – que contou com 40 artistas que cantaram e
dançaram o conto sobre o nascimento de Santa Maria – foi do jornalista e
professor do Centro Universitário Franciscano (Unifra) Bebeto Badke. O
grupo Cuíca e as vozes de Gisele Guimarães, Maninho Pinheiro, Pedro
Ribas, Deborah Rosa e Pirisca Grecco entoaram a história de Imembuy,
embalada pelos acordes dos músicos Edgar Sleifer, Felipe Álvares, Jair
Medeiros, Rafael Bisogno, Tuny Brum, Zé Everton e Ricardo Freire.
Completando a montagem, Chico Sosa encarnou Cezimbra Jacques, costurando
a narrativa da história.
No Carnaval do ano passado, a escola de
samba porto-alegrense Imperadores do Samba levou para a passarela do
Complexo Cultural do Porto Seco, na Capital, a história de Santa Maria,
com destaque para lenda, ficando em terceiro lugar entre as
concorrentes.
Em dezembro de 2011, artistas – vindos de Portugal,
da Argentina, do Uruguai e do Brasil – participaram do 1º Encontro
Internacional de Escultores de Santa Maria. Eles tiveram como tema para
suas esculturas, feitas em pedra, a Lenda de Imembuí. A intenção da
Secretaria de Cultura é levá-las para um espaço que ainda será criado,
chamado Alameda das Esculturas, no espaço entre a Avenida Presidente
Vargas e a Rua Professor Teixeira, no trecho que vai da Barão do Triunfo
a Conde de Porto Alegre.
Seja qual for a origem da história do
amor entre Imembuí e Morotin, o romance até hoje está intimamente ligado
à memória de Santa Maria. Mesmo passados cem anos de sua publicação em
livro, a sua simbologia continua forte. Se Cezimbra Jacques não resistiu
à publicação da criação supostamente literária, e João Belém gostou
tanto dela a ponto de aperfeiçoá-la em linguagem, não será um século
depois que ela cairá no esquecimento.
marilice.daronco@diariosm.com.br
MARILICE DARONCO